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Digital Markets Act: procedimento de designação de gatekeepers

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Por Juliano Souza de Albuquerque Maranhão , Bernardo de Souza Dantas Fico e Miguel Garzeri Freire
Atualização:
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão, Bernardo de Souza Dantas Fico e Miguel Garzeri Freire. Fotos: Divulgação  Foto: Estadão

Aprovada em setembro do ano passado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Europeia, a Regulação 2022/1925, mais conhecida como Digital Markets Act (DMA) é um marco tanto para o direito antitruste quanto para os mercados digitais. Há um entendimento, cada vez mais consolidado e veiculado por parte de agências reguladoras,[1] no sentido de que características típicas dos mercados digitais - como o uso intensivo de dados, grandes economias de escala e uma particular sujeição a efeitos de rede e tiping - tornariam desejável uma regulação ex ante ou demandariam uma reconfiguração da metodologia de análise antitruste.

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O DMA foi a primeira legislação de fôlego a trazer uma regulação ex ante, com obrigações específicas para os chamados gatekeepers, um conceito direcionado para abarcar as plataformas dominantes. Essa regulação já inspirou diversas outras propostas legislativas ao redor do mundo, inclusive no Brasil[2].

Durante sua tramitação, uma das críticas mais recorrentes ao DMA foi a vagueza em relação à parte dos conceitos elencados[3]. Há uma preocupação no sentido de que a definição prevista no DMA possa ser tanto sub-inclusiva pelo conteúdo, quanto sobre-inclusiva, pela potencial abrangência dos critérios objetivos de faturamento. Em dezembro do ano passado, a Comissão Europeia deu um passo importante para enfrentar a questão, ao apresentar para consulta pública uma proposta de regulamentação dos procedimentos para designação de plataformas como gatekeepers, que envolve a possibilidade de contraditório.[4]

O artigo 3 do DMA estabelece que as plataformas que preencherem determinados requisitos objetivos de faturamento, atuação geográfica, número de usuários, entre outros, devem notificar a Comissão, a fim de que se inicie o procedimento de avaliação do status de gatekeeper. Esse conceito busca espelhar três critérios cumulativos: (a) existência de impacto significativo da plataforma no mercado interno europeu; (b) fornecimento de um "serviço essencial de plataforma, que sirva como infraestrutura para o acesso de outras empresas ao mercado"; e (c) desfrute de uma posição entrincheirada, satisfazendo os requisitos objetivos nos últimos três exercícios fiscais.

A proposta submetida à consulta prevê as informações que devem ser prestadas na notificação, em alguma medida semelhantes àquelas que seriam apresentadas na notificação de uma fusão ou aquisição: lista exauriente de plataformas e serviços digitais disponibilizadas pelo agente (e por seu grupo econômico), possíveis definições dos serviços relevantes disponibilizados, informações sobre faturamento e capitalização, número de usuários nas diversas pontas dos mercados envolvidos, entre outros (arts. 2, 3 e Anexo I da proposta, e art. 3 do DMA).

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Com essas informações em mãos, a Comissão deve, então, publicar suas conclusões preliminares e, com base nelas, o interessado pode manifestar sua posição (artigos 6 da proposta e 3(5) do DMA). O procedimento de designação de gatekeeper deve ser concluído em até 45 dias, exceto se o interessado indicar, de maneira fundamentada, que, apesar de cumprir requisitos objetivos para a classificação, não deve ser qualificado como gatekeeper. Nesse caso, a Comissão terá prazo de três meses para emitir suas conclusões, devendo apresentar a decisão final em, no máximo, cinco meses (art. 17(3) do DMA)

O restante da proposta é majoritariamente dedicado a regulamentar questões procedimentais. O artigo 4 e o Anexo II definem o tamanho e a formatação das manifestações que os interessados poderão dirigir à Comissão. Os artigos 7 e 8 tratam do acesso aos autos e a informações confidenciais, ao passo que os artigos 9 e 10 estabelecem limitações para a duração dos procedimentos.

Dado que a proposta de regulação foi elaborada considerando um processo participativo, diferentes stakeholders puderam opinar sobre a minuta. Assim, diferentes agentes propuseram ajustes ao texto, buscando alcançar uma versão final que garanta a segurança jurídica necessária à temática, mas sem engessar as competências da Comissão.

Em suas submissões, empresas questionaram algumas particularidades da proposta de regulação, sugerindo ajustes às regras com diferentes graus de ênfase. Ao menos quatro tópicos parecem ter sido avaliados como relevantes por plataformas on-line participantes da consulta: a) acesso completo aos documentos do caso, b) inclusão de um hearing officer nos procedimentos da Comissão, c) necessidade de previsão de audiência, e d) limitação de páginas para as submissões.

  • Atualmente, a proposta de regulação indica acesso parcial à documentação, sendo garantido acesso apenas aos documentos utilizados nas conclusões preliminares da Comissão. Às partes seria, então, garantido o direito de solicitar acesso a documentos adicionais, mediante pedido embasado na listagem de documentos disponíveis. O acesso parcial proposto, segundo as plataformas, impediria o pleno exercício do direito de defesa, além de incentivar pedidos genéricos de acesso;
  • O hearing officer é uma figura destinada a garantir a imparcialidade e a objetividade nos casos decididos pela Comissão. Por ser um cargo criado há mais de 40 anos pela Comissão, as empresas questionam a não inclusão de suas competências na minuta de resolução;
  • As plataformas indicam em suas contribuições que a Comissão não previu a realização de audiências. Essa ausência, argumentam, poderia até mesmo conflitar com a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos em relação às garantias de um julgamento justo, e que a potencial demora jamais levou ao abandono dessa garantia processual na tradição da Comissão;
  • Por fim, questionou-se a limitação de páginas para as submissões das partes. A limitação poderia forçar gatekeepers a apresentarem argumentos simplistas, que não reflitam a complexidade do mercado em que atuam, o que, em última análise, poderia prejudicar seu direito de defesa e a formação de convencimento.
  • Há, por outro lado, outros questionamentos relevantes à regulação, como o papel de terceiros interessados no procedimento. Conforme a proposta, há pouca possibilidade de participação de terceiros e, consideradas as limitações impostas às próprias partes quanto ao acesso de documentos, a viabilidade de manifestações por terceiros em casos de interesse parece bastante reduzida.

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A simplicidade sugerida para o procedimento também traz questionamentos quanto à capacidade da Comissão de conseguir, a partir dele, ponderar os diferentes interesses implicados, podendo, ainda, indicar uma convicção prévia da Comissão sobre quais seriam os gatekeepers, o que, se confirmado, poderia contaminar todo o procedimento e até mesmo levantar questões sobre a necessária abstração do DMA como regulação do mercado e não de agentes específicos. Há uma clara tensão entre o direito às garantias do contraditório e a celeridade do procedimento[5].

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É certo que o fator tempo foi decisivo para a própria iniciativa do DMA como regulação ex ante. O tempo de análise em muitas condenações (análises ex post) levadas a cabo pela Comissão Europeia de práticas que vieram a ser tidas como anticompetitivas no mercado digital contribuiu para a concretização de efeitos considerados prejudiciais, dada a complexidade dessa nova realidade digital e a velocidade da dinâmica de competição nesses mercados. A definição prévia da presença de poder de mercado e potenciais efeitos prejudiciais de práticas no mercado digital permitem, justamente, a redução de tempo de reação da Comissão. Mas a própria definição prévia, sem o risco presente de uma infração e seus efeitos, poderia contar com o tempo de análise necessário ao contraditório e, mesmo de alguma forma, viabilizar análise de contribuições de terceiros interessados, lembrando que essas contribuições devem também oportunizar o contraditório.

A versão inicial da regulação publicada pela Comissão é apenas o ponto de partida para o debate. A Comissão pretende apresentar a versão conclusão até o final de março de 2023, com a projeção de entrada em vigor das obrigações do DMA em março de 2024[6]. Considerando que o Brasil já caminha com regulamentação semelhante, introduzida pelo Projeto de Lei nº 2768/22, em tramitação, é importante já acompanhar os pontos-chave dos debates de regulamentação do DMA para aprender com os erros e antecipar soluções para o caso brasileiro.

*Juliano Souza de Albuquerque Maranhão é sócio do Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados. Possui mais de 20 anos de experiência como advogado e parecerista nas áreas de direito antitruste, regulatório, administrativo e direito digital, com ênfase em inteligência artificial e proteção de dados

*Bernardo de Souza Dantas Fico e Miguel Garzeri Freire são advogados de Concorrencial do Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados.

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[1] Ver o relatório da OCDE: Ex ante Regulation in Digital Markets, DAF/COMP(2021)15, pp. 10-11. Disponível em https://www.oecd.org/daf/competition/ex-ante-regulation-and-competition-in-digital-markets.htm

[2] Por exemplo, o "American Innovation and Choice Online Act" e o "Open App Markets Act", nos EUA ou, no Brasil, o PL n. 2768/2022.

[3] AKMAN, Pinar. Regulating Competition in Digital Platform Markets: A Critical Assessment of the Framework and Approach of the EU Digital Markets Act. 2022; PETIT, Nicolas. The proposed digital markets act (DMA): A legal and policy review. Journal of European Competition Law & Practice, v. 12, n. 7, p. 529-541, 2021.

[4] Disponível em https://ec.europa.eu/info/law/better-regulation/have-your-say/initiatives/13540-Digital-Markets-Act-implementing-provisions_en

[5] MARTÍNEZ, Alba Ribera, The (First) Draft of the DMA's (First) Implementing Regulation from Scratch: Succinct Rights of Defence v. Expediency, Kluwer Competition Law Blog, disponível em https://competitionlawblog.kluwercompetitionlaw.com/2023/01/16/the-first-draft-of-the-dmas-first-implementing-regulation-from-scratch-succinct-rights-of-defence-v-expediency/

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[6] Disponível em https://competition-policy.ec.europa.eu/dma_en.

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